Naquela triste conjuntura

Prelúdio de Renan Ribeiro de Araújo

Muitas vezes acontecem episódios na vida das pessoas sem que estas se apercebam da repercussão disso no decorrer do tempo, em que sentido aquilo iria definir linhas mestras na existência de cada um. O texto que o ex-deputado, líder operário-camponês Floriano Bezerra de Araújo publica no seu Caderno de Memórias, nesta segunda-feira, 14 de março de 2016, fala de uma terrível luta que os campesinos e demais residentes no Vale do Açu, pelos idos de 1938, travaram para não ter suas vidas ceifadas pela infecção causada pelo parasita que usava um mosquito como vetor de inoculação da malária nos seres humanos. Óbvio que esse infausto acontecimento envolveu aspectos ecológicos, sociais e políticos. Vejam:

NAQUELA TRISTE CONJUNTURA

Ano 1938 – Eu tinha 11 anos. Vi com meus próprios olhos e fui paciente da terrível epidemia de malária que tomou conta do Vale do Açu, tanto no município de Macau, à época, região do Tabuleiro Alto até Pendências.

– Meu pai, eu e meus irmãos, menos minha mãe, todos adoecemos do chamado paludismo. Mamãe várias vezes foi receber ajuda do senhor Francisco Roque da Costa (Chico Roque), homem de mente humanista, e benfeitor da população do Tabuleiro Alto.

– No Buraco D’agua, o samaritano em termos de alimentação, foi Vicente Mateus;

– No Canto da Velha Joana, a caridosa foi uma senhora migrada do Paraú, Dona Cecília Pinheiro Maia;

– Em Tabatinga de Baixo, o homem bom e caridoso era o idoso fazendeiro, dono de grande bodega, Sr. José Ferreira Gordo, porque era pançudo, que, com o filho Expedito, ajudou muito ao povo doente e faminto, momentaneamente invalidado para o trabalho.

– Do outro lado do Rio, região do Comboieiro, dentro de um enorme carnaubal, era rico produtor da cera da carnaúba, além de agropecuarista no tabuleiro, já pelo amor do povo, atendia pelo nome de Bemzim. Acho que o mesmo era consanguíneo do Dr. Ezequiel Fonseca, e do Sr. Miga Fonseca, salvo engano. Bemzim pôs alguns imóveis seus a serviço da causa da saúde coletiva, abrigando nestes recintos, serviços de enfermagem e distribuição de medicamentos, tais como o comprimido amarelo chamado Atebrina e a substância injetável, azul, denominada Maleizina. E não faltou alimento para os doentes, pois durante 90 dias, Bemzim garantiu panelões de barro, enormes, cheios de feijoada com carne de boi e charque, e outros com batata doce cozida e arroz.

– Essa plêiade de homens poder-se-ia chamar de os grandes samaritanos, nobres benfeitores das populações doentes, famintas, sem nenhuma posse, sujeitos a morrer tanto pela malária, de inanição ou as duas misérias em conjunto. Porque não podiam trabalhar.

Aqui ressalto também a ação contundente do governo Getúlio Vargas, que chegou forte e eficiente, conseguindo erradicar em tempo relativamente curto o perigoso mosquito.

– 20 anos depois, em 1958, Chico Roque e José Belizara, chamado de Dedé, apareceram vendendo galinhas caipiras na feira do mercado público de Macau; Chico Roque nos sábados, Dedé, nas quartas-feiras. Eu falei com eles, para deixarem as galinhas que mamãe precisasse em nossa casa, e almoçariam com a gente, quando mamãe lhes pagaria as aves encomendadas. E assim aconteceu muito.

– Essas ações tinham nome: gratidão.
– Dedé Belizara havia sido nosso bom vizinho em 1938.
– Chico Roque deu tudo que tinha de suas posses. Empobreceu.
– Fatos que acontecem na roda da vida.

– Finalmente, além das “cestas básicas” de Chico Roque, o nosso benfeitor e salvador como homem, foi meu tio, irmão de minha mãe, o Congregado Mariano, próspero comerciante nos dias em Macau, Afonso Solino Bezerra, que nos mandou buscar num caminhão V8, novo de fábrica, agosto/38, para tratamento de saúde na cidade do sal, o que fez com dedicação e economias próprias, sem nunca lembrar o imenso bem que nos fez naquela triste conjuntura de nossas vidas.

(Na foto, Floriano Bezerra de Araújo com Juvêncio, Jair e Hermínio, líderes sindicalistas bancários, na inauguração do moderno Auditório José Campelo Filho, do Sindicato dos Bancários do Rio Grande do Norte)

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