Prefácio (A memória da resistência)

Prefácio (A memória da resistência)

[su_quote cite=”Ortega Y Gasset” url=”https://pt.wikipedia.org/wiki/José_Ortega_y_Gasset”]O homem não tem uma natureza, tem uma história.[/su_quote]

Talvez o professor Márcio Seligmann-Silva tenha razão quando toma o cuidado de avisar que há nas autobiografias, memórias e histórias de vidas, uma literatura do trauma que sempre irá exigir do leitor um exercício na arte de ler cicatrizes.

Os estudiosos da moderna literatura memorialista – chamadas narrativas do eu porque escritas na primeira pessoa – não defendem o novo conceito porque nascido de um modismo acadêmico. Tem hoje um vigor científico que repousa sobre a inegável importância das leituras históricas, literárias e sociais das autobiografias e memórias. São focos iluminadores de fatos, episódios e atores vivos de uma história que ficaria com áreas obscuras sem as escrituras da contribuição testemunhal.

Não importa os riscos escondidos nas dobras emocionais da subjetividade e da objetividade, como observa a professora Alba Olmi no seu livro ‘Memória e Memórias’. Há de sempre restar uma contribuição indispensável à compreensão da vida do autor e da história que ele conta. Para ela, não é possível negar o triunfo da individualidade, matéria de que são feitas autobiografias e memórias, mas é possível enriquecer essa visão compreensiva com o olhar de Ortega Y Gasset quando avisa que há uma distinção entre a natureza pessoal do homem e a sua história. Principalmente se esta é construída de gestos únicos que singularizam não a vida em si, mas seu papel na construção de uma História.

Recente entre os saberes acadêmicos, as memórias, autobiografias e diários íntimos estão hoje resguardados por um corpus de vigor crítico e científico incontestável. Como os estudos reunidos em História, Memória, Literatura: o testemunho na era das catástrofes, a grande reunião das diversas visões, organizada pelo professor Márcio Seligmann-Silva, publicado pela Universidade de Campinas, São Paulo; edição brasileira de Autobiografias, do português Abel Barros Batista, uma erudita tomada de visão biográfica sobre os personagens de Machado de Assis, também da Unicamp; e, em 2006, a tese da professora Alba Olmi, já citada, da Universidade de Santa Cruz do Sul. Em 2002, Sérgio Vilas Boas publicou o ensaio sobre as biografias na visão jornalística. Ano passado, a Universidade Federal de Minas Gerais traduziu para o Brasil O Pacto Autobiográfico: de Rousseau à Internet, de Philippe Lejeune, francês que ousou definir para o mundo a autobiografia como gênero.

Não seria justo omitir uma das mais importantes contribuições aos estudos sobre o tema que é a coleção ‘Pesquisa (Auto)Biográfica & Educação’, publicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em sete volumes, coedição com editora Paulus, cobrindo da tradução do ensaio de Christine Delory-Momberger – Biografia e Educação – aos estudos e suas visões sobre os territórios, os saberes e práticas das narrativas testemunhais sobre a vida e o cotidiano das pessoas. Afinal, para citar outra vez a professora Alba Olmi, “escrever é um modo de ser e estar na vida”. Portanto, de escrever a História.

É bem o caso deste livro.

Narrado na primeira pessoa, como se fosse simples autobiografia ou memória, conta a história de uma vida que é parte da História de um povo e suas cicatrizes.

Ninguém se engane com a suavidade quase lírica da descrição do pequeno peixe que nada nos remansos das primeiras linhas, com as suas escamas brancas e luzidias, entre suaves linhas amarelas. Isto não é uma autobiografia nascida para fazer triunfar o heroísmo pessoal. Nem memória de um tempo morto. Leiam e sintam: são carnes vivas da história arrancada de uma vida feita de luta e resistência. Como as pequenas Tamataranas que resistem ao cerco opressor até o último sopro de vida.

Floriano Bezerra de Araújo não nasceu prisioneiro de um destino comum. Seu umbigo foi cortado no beiço da Lagoa do Piató, num pequeno mundo chamado Vaca Morta, numa madrugada do ano de 1927, no Vale do Açu, quando se escrevia assim. É macauense desde 1938, chão sagrado onde ergueu as paliçadas de sua praça d’armas, e de lá partiu para lutar em defesa da liberdade do seu povo. Dos sindicatos aos mandatos parlamentares; dos cercos às prisões, sem nunca aceitar a rendição.

Filho de Venâncio Zacarias de Araújo, tropeiro e trabalhador sem terra; e de dona Querubina Solino de Araújo, mulher valente que nunca perdeu a ternura de mãe, teve nome registrado no cartório de Afonso Bezerra, na época vila de Carapebas. Dos pais, herdou a resistência. Aprendeu com as duras lições da fome que, para vencê-la, bastava um prato de pirão feito com caldo de carne-de-jabá, aferventada em pedaços miúdos e depois jogados por cima, como se fosse um banquete servido na esteira de palha. Sobreviveu e venceu. Porque nunca mais teve medo de viver e de lutar.

Autodidata até 1967, começou a estudar aos 40 anos quando já era um líder sindical. Cursou o ginásio, depois o segundo grau, até conquistar, em 1971, o diploma de técnico em contabilidade. Líder sindical de projeção nacional, foi deputado três vezes levado a plenário pela força do seu povo, o povo salineiro. Presidiu a Federação dos Trabalhadores na Indústria; fundou e presidiu sindicatos salineiros e rurais; ergueu e sustentou a bandeira de luta das Ligas Camponesa e Urbana, em Macau. Fundou e presidiu o Diretório Municipal Nacionalista e participou da campanha pela criação da Petrobras, gritando para o Brasil ouvir: ‘O Petróleo é Nosso!’.

Nestas memórias, Floriano Bezerra não se furta a trilhar as emoções antigas do menino e sua baladeira de ganho de marmeleiro. Das vivências nos sítios e fazendas onde passou os dias mágicos da infância. De outra sentir o cheiro gordo dos queijos que sua mãe fazia numa fazenda onde passaram a viver. Das lições da professora Sabina Pinheiro, mestre-escola, que para ele sabia beber o néctar da felicidade e viver feliz, como num milagre. Nada aceita omitir. Revela-se por inteiro.

Menino catador de palha velha, caçador de preá e tejuaçu e pescador de saburu nos rios antigos dos paraísos perdidos, Floriano relembra todos os seus caminhos e paragens. Tem a gratidão nunca esquecida dos bons caminhantes que lembram a água fresca e a sombra generosa para descansar – Carapebas, Pendências, Mossoró, Alto do Rodrigues, Açu e Macau; das fazendas e lagoas, como se em cada lugar ouvisse a voz do passado nas conversas e missões religiosas que passavam pregando a fé e o medo do fim do mundo. E, no entanto, nada amarga as suas lembranças. Como se a vida tangesse o destino inevitável, num estirão de recordações cheio de aventuras e do bom orgulho de tê-las vivido.

Tocado pela gratidão, uma qualidade dos bons, faz o inventário geral dos gestos que recebeu ao longo da vida, mas também da coragem, do medo e da covardia. Dos tempos do amor proibido e da violência sem fim no Beco das Quatro Bocas, território de homens e mulheres tristemente alegres, tudo para abrir os caminhos da sobrevivência. Memórias povoadas de figuras feitas das grandezas e misérias humanas; de chãos e lugares; de heróis e traidores; santos e mártires: é Macau na sua paisagem mais completa que aqui se ergue, rosto a rosto, como um mural de recordações. Floriano é o seu pintor, seu mestre de cerimônia a soprar vida para fazer voltar o tempo e vivê-lo outra vez.

Homem de luta e resistência, como as Tamataranas que vencem o terrível cerco opressor nas gamboas do seu mar, este é Floriano Bezerra de Araújo. Seu livro é sua arca. Nela estão todas as lembranças. Viu e ouviu Luiz Carlos Prestes; foi amigo de Rogaciano Leite, o poeta que morreu de tristeza; conviveu com políticos, presidentes, chefes de Estado e líderes socialistas; fundou jornais e propagadores de ideias; esteve perto e longe de todas as figuras do mundo político de sua época. De João Café a João Goulart, do Cabo Anselmo, o verme, a Djalma Maranhão. Resistiu na caatinga, como perseguido, foi torturado e preso, resistindo sem rendição. Numa madrugada de terror, ao lado de Djalma Maranhão, Luiz Maranhão e Aldo Tinoco, foi levado a Fernando de Noronha. Ao sair, saudou a liberdade diante de um oficial do Exército, mesmo sabendo que acabaria preso outras vezes.

Estas memórias de Floriano Bezerra contam não apenas a história de um homem. Mas a história de um bravo macauense. Uma legenda escrita nas pirâmides de sal refletindo o sol da liberdade nas madrugadas amanhecidas, em nome do seu grande povo salineiro. Forjado naqueles dias de chumbo que só aos homens temperados pela resistência é dado resistir e vencer.

Esta é a história de um homem maior que sua própria biografia. De profundas emoções cantadas nos seus versos de poetas de poeta a quem o mundo, se negou a glória merecida, agora já não poderá esconder o passado que estas memórias revivem como a grande herança de todos nós, os macauenses.

Vicente Serejo
Nas cinzas fevereiras do carnaval de 2009, diante do seu mar antigo.