Macau/RN (Anos 60): Valentia dos homens e dura lida pela sobrevivência

As águas retratadas na foto provêm da Ilha das Favelas, bombada para esse grande cerco através de uma casa de força (Foto: Jean Nascimento)
Macau/RN (Anos 60): Valentia dos homens e dura lida pela sobrevivência

Prelúdio de Renan Ribeiro de Araújo

Até que os pescadores de Macau tivessem alguma oportunidade de pescar permitido na Barraca (área de cerco de águas marinhas, de mais ou menos 12 kilômetros quadrados, na Ilha das Favelas, com abundante pescado, porém de pescaria penosa), vários homens da pesca ali perderam a vida. No melhor dos casos, no decorrer de gerações, dezenas de tarrafas foram cortadas e centenas apreendidas. Eu mesmo, nos anos 90, atuando como advogado da Comissão Justiça e Paz da Paróquia de Macau, promovi ação judicial que liberou dezenas delas. O texto que o ex-deputado, líder operário-camponês Floriano Bezerra de Araújo escreveu para o seu Caderno de Memórias desta segunda-feira, 13 de junho de 2016, fala desses renhidos labores de pescaria e entreveros de classe. Vejam:

MACAU/RN (ANOS 60)
VALENTIA DOS HOMENS E DURA LIDA PELA SOBREVIVÊNCIA

– Nos dias, em fria madrugada escura, aconteceu um homicídio que deu muito o que falar na “cidade das mais belas salinas do universo”.

– Protagonistas: Antônio Mourão (apelido), Antônio Passarinho, nome civil. Vigia da barragem da Ilha das Favelas. Um sessentão. João capelão, assim era chamado, pescador da sobrevivência. Vinte dois anos, 1,65m, ossudo, espartano. No seu labor honrado, portava peixeira, com a qual cortava o pescado. Cortava folhas de mangue de encomendas dos pequenos plantéis leiteiros da cidade, e ajudava nos reparos da tarrafa.

Na adolescência, quanto na vida adulta era pacato, calmo; jogava bolão de meia com a gente pelas ruas, nunca altercava com ninguém. Colega, amigo de todos de sua amizade. Ninguém acreditaria em tanta valentia no homem que se revelara.

– O fato criminal na versão policial e das ruas como correu de boca em boca. Lembro que diziam: “Capelão” foi pescar um pouco de camarão na Barragem, vulgarizada de Barraca da Cia Comércio & Navegação, atual Salinas do Nordeste S/A-SALINOR. Na primeira tarrafada, Antônio Mourão apareceu. Queria a tarrafa para cortar de faca, para Capelão não voltar a pescar, que era proibido.

Capelão disse que não dava. De faca americana em punho Antonio Mourão investiu raivoso para matá-lo. O agredido com destreza tirou o corpo fora, dando-lhe três fatais cutiladas de peixeira no tórax. Deixou rápido o ambiente. Deu sumiço da lâmina no caminho; passou na casa de alguém da família, avisou do fato acontecido. E se escafedeu, no resto de escuro do assomar da Barra. Nunca mais deu notícia pra Macau.

– Na força da minha mente bem me lembro de outras violentas injustiças sociais, do tipo citado, nos paredões salineiros de Macau. Reflexo substantivo da filosofia de vida dos Pereira Carneiro, em sua época nos seus engenhos da cana de açúcar e fazendas de Pernambuco.

– Um pescador no Amazonas exibia na televisão um Pirarucu de sete a oito quilogramas. No chofre, vi pela lente da memória as Curimãs que eu e José meu irmão, pegávamos no salto nos paredões das portas d’água da Barraca da Cia, em Macau. Uma lembrança ingrata me assalta a lente. Quando meu pai, Venâncio Zacarias de Araújo, nas suas lutas sindicais, homens capangas da Empresa Salineira, em horas ermas da noite tentaram matá-lo de emboscada no istmo de entrada do burgo já adormecido; graças à coragem moral de meu pai que os botava pra correr, como ocorrera duas vezes quando pescava nas camboas buscando refrigério pra família. Triste lembrança… Sem dúvida remanesce da tragédia da história. João Capelão de um jeito ou de outro viveu parte da vida no tal contexto social.

De 2002 para cá, moro em Natal. Das lembranças que de lá recebo há informes de vigias capangas nas Paredes reforçadas da Barraca, reservatório de peixes marinhos e camarões saborosos embora demasiadamente histaminados.

– Ah! Minhas lembranças….

(As águas retratadas na foto provêm da Ilha das Favelas, bombada para esse grande cerco através de uma casa de força)

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