Prelúdio de Renan Ribeiro de Araújo
No bioma exclusivamente brasileiro: a caatinga, entre invernos intermitentes e longas e abrasadoras secas, marcante é o choro da vida que agoniza sob atroz exploração do homem pelo homem, nas cercas do monopólio da terra. No texto desta semana, para o seu Caderno de Memórias, o ex-deputado, líder operário-camponês Floriano Bezerra de Araújo passa em revista o semiárido nordestino, com sua rica fauna em interação com arbustos e galhos retorcidos, com raízes profundas. Maravilha de poema em prosa, cheio de imagem, adjetivo e ritmo. Vejam:
A VIDA VALE SER VIVIDA INTENSAMENTE
Ano 1940/Fazenda Floresta. Minha mente memorizou e hoje aflora em mim um banco de lembranças que me faz curtir as alegrias daquela doce quadra de vida, rumo à puberdade, que faz sonhar com emoções desconhecidas.
– Eu saia de baladeira, e bizaco cheio de “pedrinhas de fogo” buscando acertar de morte as menores aves do céu (golinhas e canários amarelos, ou amarelos de tonalidade esverdeada). Assim era quando em revoadas louvavam o dia que findava, cantarolando, na secular tradição do nosso Nordeste, quando a natureza vai adormecer.
– Trago na mente grata lembrança de que nos dias de pequeno estio, às cinco horas da manhã, já me acordava com o martelar cadenciado das arapongas, e juritis sonoras, sempre alertas para predadores do seu viver pacífico e assim das aves colombinas do meu sertão de história, alegrias e sofrimentos de suas sucedidas gerações. Durante as manhãs nas plantações dos girassóis e gergelins maduros, as pequenas aves do céu em revoadas desciam nas lavouras tirando alimento do seu sustento. Quando eu chegava ao cercado, vendo-me com seus olhos e saber fenomenais em sentido quase vertical levantavam em voos de alegria do seu repasto alimentar.
– As pombinhas brancas, cascavelinas, cafofas e marrons, entoavam hinos de louvação ao sol que já esquentava de calor e claridade aurifulgente os três reinos naturais. Mais tarde da manhã, esquentados nos aconchegos maternais, estavam prontas e vigilantes para defender os seus filhotes da fúria agressiva predadora do homem caçador, que, mesmo desavisado, passasse em sua trilha marginal ao nicho de suas crias tenras ou já empenuchadas, se exercitando para voar, senão, em seu canal bical recebia o alimento que saciava o seu desejo fisiológico.
– Trago na lembrança que a ave se o caminhante não se guardasse com as mãos e retirada de urgência do lugar, poderia ter os olhos vazados pelas bicaradas impiedosas do instinto animal pelo tanto afeto maternal.
– Tenho presente na memória que belas aves de arribação, ou avoetes, nome comum nas caatingas sertanejas, quando chegavam às centenas da travessia transatlântica, das margens graminadas do Rio Nilo, no Egito, na África, nossas matas verdes bamburradas de vegetação rasteira e macambirais de pequeno e grande porte, espaços onde botavam os ovos, às centenas, dos quais eclodiriam suas crias, que crescidas, voavam em grandes bandos, nas alturas, idosas e novatas, de volta à África milenar.
– Ah! Sinto saudade do menino grande de onze/doze anos na Fazenda Floresta, um Seridó, beleza florestal do Vale do Açu, então município de Macau, hoje Alto do Rodrigues.
Nesse voo de pássaro no passado, minha mente lembra claramente os verdes lins, ou papacus, assim também chamados, em revoada alegre, desciam nas bonecas do milharal de caroço mole, e se fartavam porque seus pequenos bicos bem curvados sabiam muito bem com os grãos em formação do nosso milharal cujo produto vegetal bancava sua vida na temporada de sua lavra.
Era. Eu vivia embevecido com tantos fenômenos naturais.
– Já por isso, a vida vale ser vivida intensamente.
(Na foto, Floriano Bezerra de Araújo autografando o seu livro Minhas Tamataranas: Linhas Amarelas – Memórias para o casal Francisco Dássio e Noemi, no ano de 2009)